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Periodicidade: Semestral (edições em julho e dezembro) a partir do inicio do ano de 2013.
Mensal entre 13 de agosto de 2010 e 31 de dezembro de 2012.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

A América de veias fechadas: reflexões sobre a conquista do México (1519-1521).

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume fev., Série 09/02, 2011, p.01-09.


A conquista da cidade de México-Tenochtitlán liderada por Hernán Cortés sempre foi um dos episódios mais estudados e discutidos na história da América pré-colonial.
A maior questão certamente sempre foi entender como um pequeno número de espanhóis foi capaz de vencer uma enorme cidade, poderosa, temida e que contava com milhares de guerreiros indígenas.
A principal fonte de informações, para o episódio, são as cartas escritas pelo próprio capitão Cortés, endereçadas ao imperador Carlos V, as chamadas Cartas de Relação.
Além das epístolas de Cortes, também representam parte do corpo documental as crônicas escritas por soldados, como Bernal Díaz del Castillo e também os escritos religiosos dos franciscanos sobretudo após 1524.
Ao contrário do que se pode imaginar, na Espanha da primeira metade do século XVI e até a segunda metade do XVIII existiu um interesse muito pequeno pelos grandes feitos que ocorreram no ultramar.
Havia, na verdade, certo sentimento de menosprezo pelas Índias, pois a maior preocupação estava centrada em episódios ocorridos na Europa, como os problemas e os atritos com os inimigos francês, islâmico ou turco, pois estes acontecimentos estavam imbuídos de história e significados muito antigos no Velho Mundo.
Isso tudo tinha mais importância e sentido do que as estranhas notícias a respeito das conquistas de impérios remotos e desconhecidos, como havia sido a vitória contra os astecas.


A visão do rei da Espanha sobre a conquista do México.
Quando se conquistou a cidade do México, o rei Carlos V estava em Flandres, praticamente alheio ao que fazia Cortés na América.
Por mais incrível que pareça, em suas Memórias, que Carlos V ditou entre os anos 1550 a 1552, destinadas ao príncipe Felipe, e que cobrem os anos de 1515 e 1548, não aparece nem mesmo uma menção do Novo Mundo ou das Índias, nem do México e apenas uma referência a Hernán Cortés.

Tudo o que ele destacou se referiu aos conflitos europeus e a única alusão feita a Cortés foi numa lista de pessoas que pediram empréstimos ao rei.

A partir disso, as Cartas de Relação de Cortés só foram efetivamente lidas por volta do século XVIII e esse corpo documental foi, sem sombra de dúvidas, a maior referência para os estudos ocidentais sobre o assunto.
No entanto, não se pode achar que as cartas do capitão espanhol são a verdade nua e crua daqueles acontecimentos, mas ao contrário, elas são a representação e a leitura particular de Cortés sobre aqueles episódios, de acordo com o conceito trabalhado por Roger Chartier em “o mundo como representação”.
O fato de escrever diretamente ao rei certamente influenciou muito o jeito de narrar e a seleção do que contar, pois antes de qualquer coisa, se tratava de um relatório oficial que deveria ser feito a fim de pontuar a distância entre as ações de Cortés e a expectativa e os interesses do rei da Espanha.


A intencionalidade dos relatos espanhóis.
O relato de Cortés não tinha apenas a função de informar e nem mesmo foi escrito de modo aleatório.
No fundo, sua constituição baseava-se nos relatórios enviados às monarquias, em que devia prestar contas ao rei, contando-lhe tudo o que havia ocorrido, o que tinha encontrado, com o intuito de conseguir a confiança do imperador.
Esse tipo de estrutura narrativa foi trabalhada por Matthew Restall no livro “Sete mitos sobre a conquista espanhola” e foi chamado de probanzas, ou seja, “provas de méritos” e tinha como principal foco informar o rei e solicitar recompensas pelos atos realizados em terras distantes, sob a forma de cargos, títulos e favores pessoais, numa verdadeira relação de serviços e mercês.
Por isso, a narrativa de Cortés também está cheia de cenas maravilhosas, pois se trata de uma tradição literária com intenções específicas.
Poucos homens só vencem milhares de índios se forem descritos como seres fantásticos e maravilhosos.
Muitos e cruéis indígenas só perdem para poucos europeus se estes se comportarem de modo sensacional e atípico.
Cortés sempre escreveu depois de os acontecimentos terem ocorrido, assim como o soldado cronista Bernal Dias de Castilho em suas memórias.
Apesar dos conteúdos de todo o conjunto de crônicas de conquista, como os relatos de Cortés e as memórias de Bernal Dias, serem dos mais variados, a sua maneira, expressavam projetos políticos para o governo e o cotidiano das várias regiões pertencentes à Espanha em território americano.
No geral, para os conquistadores espanhóis a razão de sua espetacular vitória sobre os mexicas eram muito claras: haviam triunfado porque eram soldados cristãos e tinham por trás o único e verdadeiro Deus.
A guerra de conquista foi uma guerra religiosa em que Deus venceu o demônio que enganava e era adorado pelos indígenas.
Além disso, os espanhóis atribuíam a seu triunfo a superioridade da cultura europeia sobre a mesoamericana.
Eles eram pessoas mais racionais do que os indígenas, tinham mais conhecimentos e melhores costumes e, por isso, haviam vencido e mereciam ter poder sobre os mexicas.
De acordo com o historiador mexicano Federico Navarrete, desde então, os historiadores ocidentais conservaram, de alguma forma, essa perspectiva de superioridade europeia frente aos índios, como se o episódio pudesse ser naturalmente explicado e ao mesmo tempo inevitável.


O mito da superioridade européia.
No século XIX, o discurso de superioridade europeia ganhou novos tons e, por isso, surgiram explicações que destacavam a superioridade tecnológica dos espanhóis, suas armas de ferro, os canhões, a pólvora e as inteligentes estratégias de guerra, enquanto os índios eram descritos como seres de raças inferiores, bárbaros e atrasados, com armas feitas de madeira e coletes de algodão.  

A obra do norte-americano William Prescott, “A conquista do México”, foi um grande clássico dessa postura historiográfica.

Essa explicação, centrada na suposta primazia técnica dos espanhóis, foi uma das mais divulgadas na historiografia, na medida em que as armas e o desenvolvimento de uma cultura venceram o atraso da outra.
No entanto, é preciso relativizar essas explicações, mesmo porque elas surgiram num contexto de Neocolonialismo do século XIX em que a Europa, mais do que nunca, se via e se enxergava como tecnicamente superior ao resto do mundo, a partir da ciência e da suposta superioridade biológica do europeu.
Em outras palavras, essa conhecida explicação para a vitória de Cortés dialoga mais com o século XIX do que com o XVI propriamente dito.
As armas europeias não funcionavam de modo tão perfeito como se pode pensar, afirma a historiadora australiana Inga Clendinnen em seu livro “Aztecs: a interpretation”: a pólvora molhava, os canhões eram pesados e os tiros que deveriam ser preparados na hora, muitas vezes eram surpreendidos pela velocidade das flechas.
Do mesmo modo, as armas indígenas não eram tão rudimentares e pedras lançadas com velocidade e precisão poderiam até mesmo quebrar os ossos dos europeus, além da rapidez com que lançavam as flechas.
Ainda é razoável pensar que os índios, depois de tanto tempo guerreando, aprenderam a usar as armas espanholas e que os espanhóis certamente foram obrigados a usar armas indígenas a fim de se adaptarem à realidade americana.
Em pleno século XX surgiram outras explicações, mas o discurso de superioridade se assemelhava.
O conhecido livro de Tzvetan Todorov, “A conquista da América: a questão do outro” reproduz esse discurso de superioridade dos europeus.
O autor não afirma que os espanhóis triunfaram graças ao seu Deus e nem mesmo graças a sua tecnologia, mas sim à enorme e melhor capacidade de comunicação e visão de mundo dos europeus, como se os índios não conseguissem estabelecer formas criativas de se comunicar e como se eles ficassem eternamente presos à fantasia de que os conquistadores eram deuses e, portanto, invencíveis.
Nessa mesma linha interpretativa também se destacou a Guerra Florida dos índios, com dia e local marcados e que tinha como intuito apenas aprisionar guerreiros inimigos para serem sacrificados, ao passo que os europeus tinham desenvolvido a Guerra do Massacre, eficaz e baseada na emboscada.
Do mesmo modo, essa explicação também apresenta um equívoco, ao pensar que o indígena depois de dois anos de conflitos teria ficado congelado e preso às suas tradições de guerra, sem se adaptar e sem perceber, de fato, o que estava acontecendo, congelado como o eterno “bom selvagem”.
Soma-se a essas explicações o efeito das doenças sobre o universo ameríndio.
A varíola e a gripe teriam sido as grandes armas espanholas, na medida em que os índios não tinham anticorpos para essas doenças.
Ainda assim é preciso relativizar essa explicação, pois os europeus também sofriam muito com as doenças indígenas e com a insalubridade das selvas.
A sífilis, o calor, os mosquitos, as cobras e a febre amarela também mataram europeus. 
Todas estas explicações compartilharam de uma mesma matriz: os espanhóis triunfaram porque, de alguma forma, eram superiores aos mexicas e a conquista foi, portanto, algo inevitável.
É claro que não se pode negar o efeito dos canhões, das doenças ou dos intérpretes, mas o problema é determinar toda a conquista de Cortés a partir deste ou daquele fator isoladamente.
Dessa maneira, ainda que muitos lamentem as atrocidades desse acontecimento histórico, tais explicações terminam justificando esse domínio como um passo necessário na evolução da região e, muitas vezes, do mundo, a partir da égide e do domínio europeus.
As cartas e as narrativas de Cortés deram o primeiro passo para se compreender o mundo americano desse modo.


As verdadeiras razões da conquista do México pelo espanhóis
Normalmente o episódio da conquista de Cortés foi visto apenas como o enfrentamento entre índios e espanhóis, quando, no fundo, vários povos e sociedades indígenas apoiaram os europeus, como os totonacas, os tlascaltecas e, no fim, até mesmo os cholultecas.

Estes indígenas, com toda a justiça, se consideravam parte dos conquistadores, dos vitoriosos e não se sentiam de modo algum derrotados ou inferiores.



No dia 13 de agosto de 1521, os únicos vencidos foram os mexicas e os guerreiros resistentes do antigo mercado de Tlatelolco.
Todos os outros índios foram vencedores.
Desse modo, pode-se pensar que o triunfo dos espanhóis não se deveu unicamente a sua melhor tecnologia militar ou a seu Deus, mas sim à imensa capacidade que teve Hernán Cortés e seus soldados de estabelecer alianças com os povos rivais de Tenochtitlán.
A grande capacidade de articulação política do capitão espanhol conseguiu reconhecer, com a ajuda de intérpretes, essa oportunidade.
Cortés soube aproveitar a cisão do mundo indígena ao máximo, do mesmo modo que os líderes indígenas aliados, contrários a Tenochtitlán, fizeram o mesmo com Cortés, aproveitando seu desejo de domínio em nome da Espanha.
Porém, Cortés só negociou e adquiriu aliados porque esses indígenas também estavam dispostos a isso e, portanto, ofereciam um terreno fértil para as ações espanholas.
Se o raciocínio for invertido podemos até inferir: não teria sido o Cacique Gordo de Cempoala, aliado de Cortés, quem, verdadeiramente, manipulou o capitão espanhol, para com isso poder derrotar os mexicas inimigos?

As principais causas da conquista do México, portanto, não devem ser buscadas apenas nos europeus, mas dentro da própria lógica do mundo indígena e dentro da história da América pré-hispânica, a partir de seus dilemas e contradições.

Os mexicas baseavam seu domínio em forças militares, a partir do terror, da cobrança de tributos e dos sacrifícios humanos e isso os tornava vulneráveis diante de qualquer outro povo que tivesse boa capacidade bélica assim como eles e que eventualmente pudesse reagir ou organizar uma reação a esse domínio.
Ao mesmo tempo, o sentimento e a necessidade de liberdade dos outros povoados indígenas faziam com que houvesse a expectativa da chegada de um novo poder que os pudesse libertar dos astecas.
Por isso, se pode dizer que a conquista foi uma rebelião de povos indígenas mesoamericanos contra o poder mexica, encabeçada por um pequeno grupo de espanhóis.
Por isso, quando falamos em conquista do México, queremos dizer, na verdade, conquista dos mexicas, ou seja, dos habitantes de Tenochtitlán.
A generalização para o termo “conquista do México” ocorreu porque como os mexicas haviam dominado a muitas outras sociedades índias, sua derrota permitiria dominar também a todos os outros povos, de modo rápido durante o período de colonização, pois o líder que viesse a substituir Montezuma seria não apenas o novo senhor de Tenochtitlán, mas, sobretudo, exerceria domínio sobre outras sociedades indígenas, pois apesar da diferenças entre esses povos, muitos eram subjugados por um mesmo poder.


Concluindo.
A conquista do México não pode ser vista como o enfrentamento dos “malvados” espanhóis contra os “bondosos” indígenas. Sem dúvida, nessa guerra atroz, ambos os lados cometeram crueldades e muitas estiveram ao cargo dos mexicas e dos aliados indígenas, que se vingavam assim de ofensas passadas.
A região já era violenta e injusta muito antes da chegada espanhola em 1519 e a desigualdade e a violência não foram trazidas ao México apenas pelos conquistadores espanhóis, pois os mexicas já eram violentos com outros povos da região, cobrando impostos e oferecendo os prisioneiros de guerra em violentos sacrifícios humanos.
A partir dessa postura diante das ações de Cortés em terras americanas é possível rever e enxergar a história do continente americano de outra forma, em que os seus habitantes, no caso os indígenas, se tornam agentes de sua própria história e não apenas vítimas passivas das atitudes espanholas.
Essa visão permite discutir a forte ideia enraizada de que a América foi e sempre será o continente de veias abertas, pronto para ser explorado e violado por outras potências, postura presente no clássico “As veias abertas da América Latina” do jornalista uruguaio Eduardo Galeano.
Essa postura, de derrota e inferioridade foi amplamente criticada pelo historiador chileno Héctor Hernán Bruit.
Outra importante discussão seria pensar de que forma os índios aliados como, por exemplo, os tlascaltecas, tão vitoriosos quanto Cortés, negociaram espaços de poder na região com os primeiros colonos espanhóis após a vitória contra Tenochtitlán, ou seja, refletir de que modo ocorreu o rearranjo de forças políticas nos primeiros anos da colônia.
De qualquer forma, Cortés foi um dos principais atores no surgimento da América colonial, na personalidade e nas suas ações.
Como quase todos os homens, Hernán Cortés foi um tecido contraditório de bondades e maldades, de atos justos e injustos, de grandezas e de misérias, de valentia e crueldade, de nobreza e de crimes.
O trauma da conquista é uma chaga que ainda permanece viva no México atual.
Por isso, como lembrou Otavio Paz, concentra-se em sua pessoa o conflito, a morte e a origem de uma nova sociedade.


Para saber mais sobre o assunto.

FONTES:
CASTILHO, Bernal Días. Historia verdadera de la conquista de la Nueva España.México: Editorial Porrúa, 2007.
Carta de Diego Velásquez a Juan Rodrigues de Fonseca. In. MARTÍNEZ, José Luís. Documentos Cortesianos. México: FCE, 1990.
Carta de Benito Martim, capelão de Diego Velásquez ao rei, acusando a Hernán Cortés. In. MARTÍNEZ, José Luís. Documentos Cortesianos. México: FCE, 1990.
CORTÉS, Hernán. Cartas de Relación. Madrid: Dastin, 2007.
Instrucciones de Diego Velásquez a Hernán Cortés. In. MARTÍNEZ, José Luís. Documentos Cortesianos. México: FCE, 1990.

BIBLIOGRAFIA:
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
CHARTIER, Roger. “O mundo como representação”. In: À beira da falésia: a História entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2002.
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
FLORESCANO, Enrique. Memoria Mexicana. México: Taurus, 2001.
HARTOG, François. O espelho de Heródoto. Belo Horizonte: UFMG, 1999.
MARTÍNEZ, José Luís. Hernán Cortés. México: FCE/UNAM, 1990.
LINARES, Federico Navarrete. La conquista de México. México: Tercer Milenio, 2000.
PAZ, Octavio. El laberinto de la soledad. México: FCE, 1998.
POSTER, Mark. Cultural History and Postmodernity. New York: Columbia Press, 1997.
RESTALL, Matthew. Sete mitos sobre a conquista espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: uma reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.


Texto: Prof. Ms. Marcus Vinícius de Morais.
Mestre em História Cultural pela Unicamp e autor do livro Eles Formaram o Brasil, co-autor do livro História dos EUA: das origens ao século XXI, ambos publicados pela Editora Contexto.
Membro do Conselho Editorial de “Para entender a história...”

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Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

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