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Periodicidade: Semestral (edições em julho e dezembro) a partir do inicio do ano de 2013.
Mensal entre 13 de agosto de 2010 e 31 de dezembro de 2012.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

A importância pedagógica dos relatórios para contextualizar e descrever a situação prática: uma nova proposta pela inclusão da família.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume jan., Série 25/01, 2011, p.01-07.

No município de São Bernardo do Campo, na educação infantil, o mais importante instrumento metodológico avaliativo, normatizado e utilizado pela rede de ensino, é o relatório.
É em documento, redigido pela professora e revisado pelo trio-gestor (diretora, sua assistente e coordenadora).
São realizados dois relatórios por ano, um no primeiro e o outro no segundo semestre, elaborados individualmente, dois para cada criança.
Eles têm como finalidade a avaliação processual.
Ao lê-lo, deve-se visualizar os conhecimentos da criança (prévios e construídos) e o caminho percorrido, ou seja, o processo.
Assim, incluem-se intervenções, procedimentos e obstáculos vivenciados pela criança e pelo educador, pautando a análise nas áreas de conhecimentos elencadas nos referenciais curriculares nacionais e na proposta pedagógica municipal.
No entanto, a grade questão é: será que o relatório reflete a realidade prática vivenciada pelo professor e pelo educando?


Introdução a Problemática.
Ao final do semestre, o relatório é lido pela família da criança, que toma conhecimento, conversa com a professora-autora, quando julgar necessário, assinando o relatório.

O documento integra o portfólio da criança e, ao final da modalidade, escolar a família recebe o feedback educacional.
No ensino infantil II, na creche, cada criança leva o portfólio para casa, com todos os relatórios, bem como as atividades selecionadas.
Embora, apenas no último relatório, que se refere ao final do infantil II (crianças com três anos), seja fornecida uma cópia que é encaminhada para a escola que a criança integrará futuramente.
O mesmo acontece ao final do infantil V (crianças com seis anos), quando é encaminhada uma cópia do último relatório à escola de ensino fundamental onde a criança estudará.
Neste sentido, é amplamente divulgado em reuniões pedagógicas e cursos de formação de professores que o relatório deve contemplar três leitores: educador atual, professor futuro e família.
O próprio educador que redige o relatório, sendo um instrumento avaliativo de seu trabalho, necessita de uma cópia e torna-se leitor, pois precisa deste material para reavaliar constantemente sua prática pedagógica, pensando nos erros e acertos para lidar com os novos educandos que receberá no próximo ano.
A futura professora do educando precisa do relatório para lidar com seus novos alunos, tornando-o uma fonte de conhecimento dos saberes prévios de seu novo educando.
A família, a despeito de não possuir, na maior parte dos casos, conhecimentos técnicos, é um leitor em potencial do relatório, pois, ao menos teoricamente, deveria acompanhar o desenvolvimento do conhecimento e reconhecimento dos saberes construídos pela criança.
Neste último ponto é que, justamente, reside a grande problemática estabelecida para debate.    
Em doze anos de prática na rede de ensino de São Bernardo do Campo, vivenciado em algumas escolas diferentes, percebemos que existe um cuidado e preocupação com a escrita do relatório, mas sempre voltado apenas aos profissionais da educação.
As professoras sempre são orientadas e formadas para que o relatório retrate fielmente os conhecimentos das crianças, devendo retratar áreas de conhecimentos, hipóteses de escritas, desenho, construção dos números, fala, oralidade, desenvolvimento corporal e espacial, comportamento social.
Muitas vezes as educadoras são orientadas a redigir o relatório dando ênfase além nas intervenções e construções, além dos referenciais pedagógicos, citando a teoria que fundamento a prática.
A questão é que a professora não acompanha a criança vinte e quatro horas por dia, tem um contato limitado com o educando, restrito há poucas horas por dia.
Assim, ao deixar de lado ou colocar a família como leitor secundário do feedback educacional, a professora esquece que os pais poderiam e deveriam colaborar para elaboração do relatório.
Portanto, o relatório perde seu sentido e eficácia, transforma-se de instrumento pedagógico em mero imperativo burocrático.



Fundamentação teórica.
A fundamentação teórica para a hipótese da importância da família na elaboração do relatório encontra respaldo em vários pressupostos teóricos.
Está baseada, por exemplo, na problemática em torno das famílias que foi objeto de estudo da autora Cynnthia Andersen Sarti, em seu texto A Família como ordem simbólica, um trabalho centralizado nas famílias pobres, da periferia.
A autora pesquisou os desfavorecidos em relação aos valores sociais da riqueza, do prestígio e do poder.
Segundo ela, a maioria dos pais de família são semi-analfabetos, alguns mal escrevem o próprio nome, sendo obrigados pelos educadores de seus filhos a ler um relatório de duas, três páginas digitadas.
Sabendo disto, a orientação e prática das professoras deveria ser no sentido que o relatório tivesse um corpo geral, para facilitar a localização dos pais.
Como o relatório não privilegia a família como leitor, sendo a linguagem utilizada pelas professoras relatoras voltada para seus pares, torna-se de difícil compreensão para os pais.
Devemos considerar que existem textos que, mesmo para alguém letrado, graduado e em pós-graduação, são difíceis.
Nestes textos, a linguagem utilizada pelo autor dificulta o entendimento, fazendo que seja necessário ler e reler, ir e voltar nas frases, grifando, lendo devagar, fazendo uso constante do dicionário.
Será que o mesmo não acontece com a maioria das famílias ao lerem os relatórios que escrevem as educadoras infantis?
A linguagem aproxima ou, ao contrário, dificulta?


Educadoras x Familia.
Na relação entre educadoras e pais, que deveria ser dialética, devemos considerar as desvantagens que as famílias dos educandos possuem em relação às educadoras por sua própria condição social.
Desvantagem esta entendida, segundo Lígia Assumpção Amaral, devido à condição social de prejuízo e a interação dos pais dos educandos com seu meio.
Uma desvantagem social, já que estas famílias tiveram menos oportunidades culturais em relação às professoras, autoras dos relatórios, que escolhem a linguagem e o formato do texto.
Ao contrário do que é feito, seria necessário refletir sobre o sistema educacional em que nós educadoras estamos inseridas, um meio que deveria ser utilizado para trazer novas orientações e formações para que redigíssemos os relatórios pensando também na família dos educandos.
É verdade que correríamos um risco, fazer diferente poderia deixar a linguagem, o texto, empobrecido demais.
Algo que do ponto de vista pedagógico ou de linguagem não é permitido.
Para que isto não ocorra, o sistema já possui orientações padronizadas, coloca e cobra do trio-gestor, parte fundamental deste processo, uma postura auto-corretiva.
É o trio que deve orientar, revisar e readequar os parâmetros, remetendo o relatório de volta para que o professor o modifique até que atenda um mínimo de exigência erudita.
Exigências, este é outro ponto passivo de reflexão.
Exigência para quê?  Para quem?  Segundo o quê?
A quem importa ou deveria importar mais o relatório: aos professores que participam da educação da criança durante aquele ano ou a família que é parte da vida dele sempre?
O relatório deveria ter a mesma importância e entendimento para educadoras e pais.
Entretanto, poderia-se argumentar que são os professores os especialistas da educação formal e, por isso, devem saber mais sobre seu objeto de estudo e prática profissional.
Por outro lado, nada impede que as educadoras infantis também encontrem meios de se relacionar de maneira efetiva com as famílias dos educandos, integrá-las a escola.
Uma verdadeira educadora se preocupa com todos os aspectos do desenvolvimento da criança, o que, necessariamente, carece do envolvimento da família.


Ainda sobre os problemas atuais dos relatórios.
Os relatórios, da forma como estão sendo estruturados atualmente, não ajudam os educandos, muito menos as professoras.
Pelo contrário, afastando a família, prejudicam o próprio sistema educacional e a prática pedagógica concreta.
Como o individuo, família, pode querer participar do dia-a-dia da escola quando vai à reunião da criança, sendo obrigado a ler um texto enorme, que mal consegue entender?
Logo pensa: devo saber pouco para poder ajudar, melhor ficar calado e não participar de nada.
Nesta lógica, este tipo de relatório vai afastando a família da real participação na escola.
O que conduz novas questões.
Será que a família constitui-se pela construção de identidades e qual é a identidade que estamos ajudando a formar nas famílias de nossas crianças?
Será que a escola sabe e a família não?
Será que a educação formal é mais importante de fato que a informal?
Como colaborar com a escola que se coloca como detentora absoluta do saber?
Não é esta identidade familiar que queremos para nossas crianças e suas famílias.
É exatamente a oposta, pois a família sabe muito e, colaborando com as educadoras, tem muito ensinar.
As professoras e funcionários em geral da escola, assim como, e não menos importante, as crianças, precisam do apoio, conhecimento e ajuda da família e da comunidade.
Portanto, os relatórios deveriam ser meio de aproximação com as famílias, ajudando a reverter, modificar, esta identidade que a escola criou e reafirma, segregando os pais, valorizando seus conhecimentos para que compreendam e valorizem sua participação.
As idéias presentes no texto A Família como ordem simbólica me fizeram também compreender porque temos esta postura.
Olhamos para as famílias a partir de nossas referências, isto nos impede de enxergar a realidade concreta.
É necessário um estranhamento para considerar a realidade das famílias com que trabalhamos.
O tabu de famílias nucleares como as únicas estruturadas - aquelas com papai, mamãe e filhos - já foi quebrado.
Existem muitos tipos de família e, seja qual for, são elas que se relacionam socialmente, diariamente, com os educandos que estudam nas escolas.
Quem cuida e se preocupa é sempre a família, porque então a escola também não pode se transformar em uma grande família.
Neste sentido, o grande desafio é a aceitação da diversidade social e cultural destas famílias, que são diferentes das nossas, pois partem de outras realidades e relações.
Mas do que isto, o maior desafio é encontrar maneiras da escola e nós educadoras nos relacionarmos de forma efetiva com estas famílias e suas realidades tão diversas.
Cabe lembrar que, nesta diversidade inclui-se a nossa, das educadoras.
O primeiro passo é aceitar e conseguir perceber isto para podermos nos afastar, conseguirmos separar a nossa realidade e encarar outras tantas.
Você quer dar este primeiro passo?



Concluindo.
Em doze anos de prática pedagógica na rede municipal infantil de São Bernardo do Campo, escrevi inúmeros relatórios.
Sempre me dediquei tanto! Foram horas e horas registrando, refletindo, pensando, dando meu melhor.
Achava que estava arrasando!!!
Quantas vezes sacrifiquei meu sono, minha própria família, entrando madrugada adentro escrevendo.
E agora, diante de meus novos conhecimentos, através de algumas leituras, discussões e reflexões, estou conseguindo perceber o quanto ainda tenho que caminhar e desenvolver em meus relatórios para que afetem de fato as famílias e não gerem mais problemas que soluções.
Como falhei com as famílias de minhas crianças!
Quanto reforcei esta imagem negativa da família em relação à escola!
É por isto que tenho como proposta a urgente e necessária mudança da realidade do relatório: o foco deve ser também a família.
Poderíamos começar com reuniões individualizadas com as famílias, voltadas à leitura dos relatórios.
Assim, nós professoras poderíamos ir conversando, lendo junto o relatório, explicando e escutando, para poder, no futuro, construir junto com os pais, uma analise mais eficiente do desenvolvimento do educando.
Seria formativo para as famílias e para nós educadoras.
Acredito que a escola também deva cumprir este papel cultural: aumentar os conhecimentos das famílias sobre o que fazemos na escola, além de como fazemos e o que pretendemos alcançar.
Para nós, com certeza, um contato direto com as famílias garantiria, no mínimo, um melhor conhecimento de cada uma delas e, assim, uma conseqüente valorização de seus costumes e realidades.
O que poderia ajudar na construção de uma identidade positiva de família que sabe muito, a qual a escola precisa para melhorar o seu padrão de qualidade!
Outra sugestão seria modificar o relatório em si, a forma como é escrito, torná-lo mais direto, compreensível para a maioria das famílias de nossos pequenos.
Através desta reflexão, creio que a resposta para minha última indagação esteja ligada ao fato da família apenas ler o relatório e não ser co-autora, o que tona tudo mais difícil, o caminho mais longo, mas não impossível.
Através de um contato mais direto com as famílias na leitura dos relatórios, poderíamos resignificá-lo e, com o tempo, com a prática junto educandos e pais, escutando, abrir espaço para que participação da comunidade se torne efetiva na escola.
Para iniciar, poderíamos começar por investigar se os familiares dos educandos concordam ou não com o que nós professoras escrevemos.
Para ampliar esta ação inicial, deveríamos tentar fazer os familiares perceberem que seus pequenos fazem, em casa, atividades que se relacionam com a escola.
Uma mudança de atitude que abriria outras tantas possibilidades.
Não podemos esquecer que a riqueza está exatamente nesta diversidade de possibilidades!


Para saber mais sobre o assunto.
AMARAL, L. A. “Sobre crocodilos e avestruzes: falando de diferenças físicas, preconceitos e sua superação” In: AQUINO, J. G. Diferenças e preconceito na escola. São Paulo: Summus. 1998.
SARTI, C. A. “A família como ordem simbólica” In: Psicologia USP. V. 15. n. 3, 2004.
SPAGGIARI, S. “A parceria comunidade-professor na administração das escolas” In: EDWARDS; GANDINI, L. & FORMAN, G. (orgs). As cem linguagens da criança. Porto Alegre: Editora Artes Médicas Sul. 1999.


Texto: Cláudia Pestana Ramos de Alvarenga.
Pedagoga pela Fundação Santo André.
Pós-graduanda em Educação Infantil pela USP.
Professora da rede municipal de ensino de São Bernardo do Campo.
Professora no Colégio São José de São Bernardo do Campo.

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Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

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