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Periodicidade: Semestral (edições em julho e dezembro) a partir do inicio do ano de 2013.
Mensal entre 13 de agosto de 2010 e 31 de dezembro de 2012.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A transposição da realidade histórica na Comédia “O mercador de Veneza” de William Shakespeare.

Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 1, Volume set., Série 16/09, 2010.


Introdução.

Nas obras de Shakespeare, existe todo um contexto histórico que espelha a passagem da Idade Média para a Modernidade, isto se é que o dramaturgo realmente existiu.
Segundo alguns especialistas, afirmam que Shakespeare é um pseudônimo que representa um conjunto de autores que produziam peças em conjunto.
Enquanto outros admitem a existência de Shakespeare, mas defendem a ideia de que não foi ele que escreveu todos os textos atribuídos a sua pessoa.
Hipóteses que transitam entre os eruditos desde o século XVIII.
De qualquer forma, a obra “O mercador de Veneza” teria sido escrita entre 1594 e 1597, retratando o contexto do comercio de especiarias, o qual seria fundamental para alavancar o mercantilismo e o nascente sistema capitalista.

A obra.
Em sua Comédia “O mercador de Veneza”, escrita entre 1596 e 1601, o inglês William Shakespeare termina por refletir todo um período de transição que compreende a passagem da Idade Média para a Moderna.
Shakespeare narra a estória de Bassâncio, que apaixonado por Pórcia, sem possuir recursos suficientes para cortejá-la, pede um empréstimo ao seu amigo Antônio.
Este possuía todo seu capital investido nas navegações, contraindo um empréstimo junto a um rico judeu a fim de financiar o romance do amigo.
O judeu vê no empréstimo uma maneira de vingar-se de Antônio que o havia injuriado, exige então como forma de garantia uma libra de carne de Antônio caso este não salde a divida em três meses.
Chega a noticia do naufrágio dos navios de Antônio e o judeu exige que salde sua divida com a libra de carne prometida.
No final Antônio acaba se safando e Bassâncio se casa com sua amada, o judeu perde metade de seus bens para Antônio.
Tudo se passa na Itália do século XVI, sobretudo nas cidades de Gênova e Belmonte.

A transição para a Idade Moderna.
Embora cronologicamente tenha se convencionado que a Idade Moderna se inicia em 1456, cujo marco para alguns seria a queda de Constantinopla e para outros a descoberta da América por Colombo, sabemos que a coisa não é tão simples assim.
Na verdade, creio que deveríamos considerar todo o século XV e XVI, como um período de transição onde conviveram os antigos elementos feudais juntamente com as novas tendências mercantilistas.
Shakespeare que foi contemporâneo deste período de transição soube retrata-lo bem.
Através de seus personagens Antônio e Bassâncio, conseguiu descrever com maestria dois estilos de vida em oposição, cada qual representando uma tendência em especifico.
No caso Antônio seria o típico representante da nova tendência mercantilista, o próprio representante de uma pré-burguesia detentora do capital ligado as navegações europeias.
Enquanto por sua vez Bassâncio seria o típico representante da nobreza, já então em decadência e dependente, de certo modo, desta pré-burguesia.
No caso de Antônio, o autor declaradamente narra que ele é proprietário de “um galeão destinado a Trípoli, outro a caminho das Índias (...), um terceiro no México, e um quarto rumo à Inglaterra”, possuindo “ainda outros espalhados em longínquas regiões”. 
Shakespeare refere-se a Antônio como um rico negociante de “especiarias” e “sedas”. 
O que é totalmente verossímil, uma vez que sendo este personagem veneziano, sua nacionalidade o torna um natural financiador das viagens marítimas, sobretudo portuguesas.

Portugal e os genoveses.
Sendo Portugal um país pobre e militarmente fraco, a única alternativa possível visando superar esta questão foi a expansão ultramarina.
Devido à falta de recursos econômicos da Coroa portuguesa, o Estado foi obrigado a contrair empréstimos internos junto aos “judeus” portugueses.
Os empréstimos externos, por sua vez, foram obtidos com comerciantes “florentinos” e “genoveses”.
Estes últimos, muitas vezes, terminavam funcionando como verdadeiros armadores e, portanto, como os reais proprietários de muitas das embarcações portuguesas.
Neste tocante, é necessário lembrar que os italianos participaram da expansão marítima européia, principalmente através de seu capital.
O apoio italiano as navegações portuguesas veio somente depois que uma galera genovesa que partiu em 1291 em busca de uma rota marítima para a Índia nunca mais foi vista.
Por disporem os portugueses de embarcações e técnicas marítimas mais apropriadas os genevoses terminaram financiando suas viagens.

A burguesia e a nobreza no contexto das navegações.    
Pelo próprio contexto histórico, o personagem Antônio representa o pré-burguês ligado ao financiamento das navegações portuguesas e espanholas.
Através deste personagem, Shakespeare consegue transmitir toda a incerteza do investimento neste tipo de empreendimento.
Era uma época em que toda e qualquer embarcação estava sujeita a encalhar ou naufragar, levando seu proprietário ou financiador de “opulento” a “reduzido a nada num instante”.
É interessante salientar que entre 1497 e 1653 o índice de naufrágios das navegações portuguesas foi da ordem de “19,08%”.
Já no caso do personagem Bassânio, apesar de não ser expresso claramente pelo autor, tudo leva a crer que seja um típico representante da decadente nobreza européia.
Pelo seu próprio estilo de vida repleto de “fausto excessivo”, através do qual “dissipou” sua “fortuna”, e mesmo por sua preocupação em saudar suas dividas com “honra”, somos levados a pensar que seja um nobre empobrecido e dependente dos empréstimos de seu amigo, o mercador Antônio.
Além disto, sua pretensão em conquistar o amor de Pórcia, rica herdeira de uma nobre família, cujos outros pretendentes são descritos como pertencentes à nobreza, conduz a concluir que Bassâncio esta enquadrado na mesma condição.
Isto também, a medida os que casamentos dentro da nobreza eram sempre realizados entre iguais.
Através dos outros pretendentes de Pórcia, Shakespeare termina descrevendo os principais caracteres da nobreza da época.
Segundo o autor a decadente nobreza deste período é constituída por homens que só sabiam falar de cavalos ou de filosofia “lacrimosa”, estando sempre metidos em brigas entre si.
Shakespeare descreve ainda um jovem pretendente alemão de Pórcia, sobrinho do Duque da Saxônia, como “repugnante pela manhã, quando está sóbrio, e mais repugnante ainda, quando está embriagado pelas horas da tarde”.
Ao mesmo tempo em que Shakespeare retrata com maestria a nobreza decadente, quase tão bem como fez Cervantes em seu “D. Quixote”.

Porém, devemos notar que Cervantes possuía em seu texto idéias cruzadísticas que não existem no texto de Shakespeare.

Os judeus e o anti-semitismo europeu.
Em “O mercador de Veneza”, outro componente essencial é a questão do papel dos judeus dentro da sociedade da época.
Através do personagem Shylock, Shakespeare retrata um rico judeu que vive da usura, ou seja, empréstimo a juros.
Papel realmente desempenhado, sobretudo no século XV e XVI, em sua maior parte, pelos judeus, uma vez que a usura era condenada pela Igreja Cristã.
Shylock é descrito como um infiel cão assassino e até mesmo como o próprio diabo encarnado, por diversas vezes a característica peculiar a religião judaica de não consumir carne de porco é ridulalizada.
Por fim o personagem termina se dando mal, perdendo, além do dinheiro emprestado a Antônio, metade de seus bens e sua própria filha.
Deste modo, Shakespeare termina retratando a questão da hostilidade européia ao judaísmo de forma extremamente realista.
O que de modo algum, dentro do contexto da época, caracteriza preconceito racial, mas sim um anti-semitismo vinculado a esfera religiosa.
O único momento em que Shylock é descrito como um “amável judeu”, é quando se afirma que de tão amável há de acabar “por virar cristão”, pois está se “tornando bom”.
É exatamente o momento em que o judeu acaba concordando em fazer um empréstimo a Antônio, mostrando de forma realista que o papel do judeu usurário foi impresindivel ao desenvolvimento do mercantilismo.
No tocante ao ódio nutrido pelos cristãos contra os judeus, é interessante lembrar que antes do século XV, o preconceito não estava relacionado, especificamente, ao antagonismo de raças.
A aversão entre os grupos estava presa às divergências religiosas entre cristãos e infiéis.  As grandes descobertas e a colonização de novas terras, graças aos interesses das grandes potências colonizadoras, encobriu o antagonismo religioso, substituído por justificativas raciais.

Mulheres e miscigenação.
As judias, representadas no caso pela personagem Jessica, filha do judeu Shylock, são descritas como “encantadoras pagãs” e “deliciosas judias”.
Uma afirmação em concordância de acordo com a real atração exercida pela beleza exótica das judias e mouras.
O que faria com que, principalmente em Portugal, houvesse uma certa miscigenação neste sentido.
Esta atração e miscigenação esta comprovada pelo conto popular português da “Moura Encantada”.

Uma mulher de origem muçulmana que seduzia os cristãos através de sua beleza sem igual.

Concluindo.
Segundo alguns comentadores, “O mercador de Veneza” de Shakespeare, seria inspirado em um conto de Ser Giovanni Fiorentino, publicado em 1558. 
Segundo outros seria apenas uma mera cópia do mesmo.
Cópia ou obra original, de fato devemos reconhecer que somente Shakespeare seria capaz de transpor a realidade histórica da época retratada para uma de suas comédias.
Tenha ele existido ou não, o mérito principal do texto, do ponto de vista de um historiador, consiste justamente em retratar o contexto da entrada da Europa na Idade Moderna.


Para saber mais sobre o assunto.
ALBUQUERQUE, Luís de (org.). Relações da Carreira da Índia. Lisboa: Alfa, 1989.
ARNOLD, David. A época dos descobrimentos. Lisboa: Gradiva, 1983.
AZEVEDO, J. Lúcio de. Épocas de Portugal Econômico. Lisboa: Clássica Editora, 1988.
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito Racial: Portugal e Brasil-Colonia. São Paulo: Brasiliense, 1988.
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote: o cavaleiro da triste figura. São Paulo: Scipione, 1995.
COELHO, Adolfo (org.). Contos populares portugueses. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993.
SHAHESPEARE, William. “O mercador de Veneza” In: Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguiar, 1995.
RAMOS, Fábio Pestana. No tempo das especiarias. São Paulo: Contexto, 2004.

Texto:
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.

Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.




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Forte abraço.
Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.

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